terça-feira, março 11, 2008


EM CRETA, COM O MINOTAURO
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se
despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou
serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de
gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste
mundo
quando não acredito em outro, e só outro
quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer
de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da
vida.
É metade boi e metade homem, como todos os
homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos
da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num
novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos,
um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café
comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as
sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como
dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu,
porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais
seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da
Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há
séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando
somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras
para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o
Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas
café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Jorge de Sena (1919-1978)